Enquanto lia o texto "O controle da Sociedade Disciplinar", de Renato Nunes Bittencourt, revista Filosofia - Ciência e Vida: http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/edicoes/42/artigo160007-1.asp , lembrei-me do filme Fahrenheit 451 (não, não é o filme do Michael Moore), escrito por Ray Bradbury e dirigido por Truffaut (sendo seu primeiro filme colorido, em 66). A última página do texto supracitado diz "Outro grande ponto em comum que podemos encontrar nas grandes distopias literárias de Huxley e Orwell consiste na demonização da leitura e dos livros", o que é exatamente a premissa principal do Fahrenheit 451 (cujo título faz menção à temperatura do fogo, no qual os livros são queimados).
O autor continua "Nada é pior para o 'bem-estar' social do que a literatura tradicional, pois esta apresenta um caráter sujo, corruptor da condição humana e do status quo da elite no poder. A motivação de repressão aos livros é nítida: a leitura favorece a reflexão, logo, a politização do indivíduo e sua capacidade de transformar a sociedade, questionando a arbitrariedade do poder. O projeto iluminista de a racionalidade conduzir o homem cai por terra na era da insana sociedade disciplinar, com o seu porvir distópico ameaçando a sanidade de nossa controlada 'paz' social."
Porém, remeto-me a um outro texto da revista Filosofia, sobre a Escola de Frankfurt, falando sobre a ilusão iluminista da salvação humana através da razão ( http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/edicoes/44/artigo163672-3.asp matéria de João E. Neto, "Dialética do Virtual", na edição 44):
"[...] o ponto de partida do Iluminismo é uma extrema confiança no poder da razão esclarecida, cujo desenvolvimento progressivo levaria a humanidade a uma melhoria de condições sociais, políticas, morais e materiais. Os conhecimentos científicos e técnicos, fruto dessa razão esclarecida, serviriam como ferramentas para promover a caminhada da civilização ao progresso. No mesmo sentido, esse desenrolar progressista da razão também conduziria os homens à libertação em relação aos mitos, superstições, dogmas e tiranias. Assim sendo, somente através do pensamento esclarecido é que a humanidade chegaria à maturidade, pois o homem emancipado seria um sujeito autorreflexivo e guiado por seu próprio intelecto.
Em a Dialética do Esclarecimento, entretanto, Adorno e Horkheimer colocaram em xeque esse otimismo iluminista em relação à razão esclarecida e ao contínuo progresso material e espiritual da humanidade."
"[Para esses autores], a relação que a razão iluminista estabeleceu com a natureza foi uma relação de dominação e controle.
[...] fazendo uso do experimento científico e matematizando os fenômenos naturais, o ser humano poderia desvendar os segredos do mundo e, assim, dominá-lo. O homem deveria se tornar um sujeito conhecedor e dominador, enquanto que o mundo teria de ser o objeto a ser conhecido e dominado. Influenciados principalmente pelo pensamento de Freud (1856-1939) e Nietzsche (1844-1900), os frankfurtianos afirmam que essa tendência iluminista de dominação do mundo seria, no entanto, fruto do medo de desintegração do sujeito frente aos desconhecidos perigos da natureza.
[...] Desse 'medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de desconhecido', quando ele, através de sua razão esclarecida, consegue desvendar e controlar a natureza (Dialética do Esclarecimento, p.26)."
Observando a situação na qual o mundo se encontra atualmente, percebe-se que a proposta de progresso Iluminista, cartesiana, foi uma grande ilusão, que apenas relegou à "Ciência" o mesmo lugar onde se encontravam os mitos e as religiões, sendo incapaz de prover ao homem a realização prometida.
Em Fahrenheit, os bombeiros não apagam o fogo: iniciam-no. Mais especificamente, contra livros e demais obras escritas. Fica clara a representação do livro nas distopias totalitárias (me pergunto se isso é uma redundância, pois não conheço todas as obras distópicas existentes, apesar de perceber que esse sistema político é uma constante em tal estilo), passando uma mensagem subjacente de que a leitura, e, consequentemente, o conhecimento, é um perigo para o sistema, pois torna as pessoas críticas e potencialmente autônomas. Ao contrário das distopias de Huxley e Orwell, o sci-fi de Bradbury termina com um tom mais otimista (sem spoilers, ok?), mas tem a ver com o simbolismo da fênix, do renascimento a partir das cinzas... Bem, esse filme é bem recheado de metáforas. Os nomes dos personagens, por exemplo, merecem uma análise à parte. A relação de Montag com a esposa, as demais relações familiares, as formas de entretenimento, são também alguns itens que merecem atenção na obra.
Enfim, não me proponho a fazer uma análise desse filme especificamente pois não pretendo revê-lo em breve, por motivos sentimentais envolvendo um ex-namorado, haha. E como faz tempo que o vi, já não lembro dos detalhes. Mas recomendo-o, apesar de preferir as distopias com finais mais niilistas, por assim dizer.